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'Lei da mordaça'?: as novas normas em Cuba que criminalizam quem fala mal do governo nas redes sociais

Pouco mais de um mês após os protestos que abalaram o país — e que foram convocados pela internet —, as autoridades da ilha anunciaram uma lei...

Por LivreTV Notícias em 24/08/2021 às 11:27:08
Pouco mais de um mĂȘs após os protestos que abalaram o paĂ­s — e que foram convocados pela internet —, as autoridades da ilha anunciaram uma lei que pune o que consideram crimes cibernéticos. O governo cubano aprovou novas regulamentações para a internet

AFP/BBC

O governo de Cuba tenta mais uma vez controlar a internet.

Pouco mais de um mĂȘs após os protestos em massa que abalaram o paĂ­s — e que foram convocados por meio das redes sociais —, as autoridades da ilha publicaram na Ășltima terça-feira (17) uma série de regulamentos que tipificam pela primeira vez o que consideram crimes cibernéticos passĂ­veis de processo criminal.

Mas vão muito além: consideram como "incidentes de cibersegurança" desde ataques de vĂ­rus e "falhas elétricas" até a possibilidade de usar as redes sociais para convocar uma passeata, criticar o governo, pedir ou incitar uma mudança no sistema.

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Os meios de comunicação oficiais classificaram a iniciativa como "as normas de tecnologias da informação e comunicação de mais alto nĂ­vel aprovadas em Cuba" e asseguraram que buscam oferecer o que definem como "uma internet ética e boa para a população".

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Nas redes sociais, cubanos a chamaram, por sua vez, de uma nova "lei da mordaça", que eles acreditam que visa limitar a expressão e restringir seu discurso.

Especialistas em regulamentação da internet e organizações de direitos humanos também se manifestaram diante do que consideram medidas destinadas a eliminar o debate pĂșblico.

"É grave pelo que diz e pelo momento em que estĂĄ sendo publicada, um mĂȘs depois dos protestos, quando a comunidade internacional esperava mais um passo para ouvir a população e não para reprimir mais o discurso", afirma à BBC News Mundo, serviço de notĂ­cias em espanhol da BBC, Pedro Vaca, relator especial para a liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

"Por um lado, os direitos humanos dos cidadãos não são reconhecidos, a liberdade de expressão não é reconhecida. E, por outro, o que os cidadãos podem ou não publicar na internet é visto a partir de uma perspetiva criminosa e de guerra", acrescenta.

Os novos regulamentos foram publicados em um momento em que os cubanos usaram as redes sociais não só para denunciar os vĂĄrios detidos no protesto de 11 de julho, que continuam presos, mas também as terrĂ­veis condições com as quais padecem com o colapso do sistema de saĂșde.

A ilha vive o pior momento da pandemia de Covid-19, com milhares de casos e dezenas de mortes todos os dias, hospitais superlotados, covas coletivas, falta de medicamentos, de oxigĂȘnio, de suprimentos e de pessoal, o que tem sido refletido sistematicamente por meio da internet em um discurso cidadão paralelo ao relato da imprensa oficial.

Os novos regulamentos

VĂĄrios paĂ­ses do mundo aprovaram — ou propuseram — regulamentos para controlar a disseminação de certas mensagens na internet, sobretudo discurso de ódio, difamação, incitamento à violĂȘncia ou "terrorismo".

Segundo as autoridades cubanas, esses também são alguns dos objetivos das normas que acabam de anunciar.

"Nosso Decreto-Lei 35 (um dos aprovados) vai contra a desinformação e as 'cibermentiras'", escreveu o presidente Miguel DĂ­az-Canel no Twitter.

O vice-ministro das Comunicações, Ernesto RodrĂ­guez HernĂĄndez, afirmou, por sua vez, que as novas normas "promovem o avanço da informatização da sociedade, defendendo os direitos dos cidadãos consagrados na Constituição: igualdade, privacidade e sigilo das comunicações".

Mas os especialistas consultados pela BBC News Mundo destacam que, diferentemente do que fizeram outros paĂ­ses, as novas regulamentações em Cuba parecem ter uma matriz ideológica (o texto de um dos decretos esclarece que visa "defender as conquistas alcançadas pelo Estado Socialista") e que são voltadas a conter qualquer crĂ­tica ao sistema.

Os regulamentos estabelecem 17 delitos ou "incidentes de cibersegurança", com "nĂ­veis de periculosidade" que vão de "médio" a "muito alto" — e, em muitos casos, é o conteĂșdo polĂ­tico que determina a periculosidade.

Jovem verifica celular em Cuba perto de um hotspot de internet

Tomas Bravo/Reuters

Para se ter uma ideia, diferentemente da maioria das normas internacionais de internet, a cubana não menciona nem parece buscar o combate à pornografia infantil, crime que estĂĄ por trĂĄs das leis de controle de conteĂșdo em todo o mundo.

A regulamentação cubana apenas menciona a pornografia como "difusão e distribuição" de "material pornogrĂĄfico" — e a considera como tendo um nĂ­vel de periculosidade "médio".

No entanto, considera como tendo periculosidade "muito alta" a "subversão social", que define como "tentativa de alterar a ordem pĂșblica e promover a indisciplina social", o ciberterrorismo, entendido como ações para "subverter a ordem constitucional" ou a "guerra cibernética", a que chama de "métodos de guerra não convencionais", o que quer que isso signifique.

Também considera altamente perigosa a "divulgação de notĂ­cias falsas", "mensagens ofensivas" e "difamação com impacto no prestĂ­gio do paĂ­s" , sem especificar em que consiste cada uma delas, embora encabecem a lista dos delitos.

Pessoas utilizam o celular para se conectar à internet utilizando o WiFi em um parque em Havana, Cuba. Os cubanos passaram a ter acesso à rede nesta quinta (06), mas ainda por um alto custo

Yamil Lage/AFP

Nesse sentido, outro vice-ministro das Comunicações, Wilfredo GonzĂĄlez, disse à agĂȘncia de notĂ­cias AFP que a norma pretendia que "ninguém seja capaz de distorcer a verdade, para que ninguém possa depreciar um funcionĂĄrio do nosso paĂ­s ou do nosso processo revolucionĂĄrio".

Por isso, muitos cubanos entenderam que um dos objetivos das autoridades é penalizar quem zomba de seus dirigentes nas redes sociais, sobretudo do presidente, que ganhou um apelido muito popular baseado em uma palavra considerada vulgar na linguagem coloquial cubana.

As redes sociais da ilha estão repletas desde a Ășltima terça-feira de memes, piadas e trocadilhos em que dizem as mesmas provocações e crĂ­ticas, mas com o tão peculiar duplo sentido do humor da ilha.

Um velho método virou lei

Durante anos, Cuba foi um dos paĂ­ses da América Latina com a pior conexão de internet, perdendo apenas para o Haiti.

No entanto, a partir de 2018, o governo, na época sob comando de RaĂșl Castro, começou a ampliar progressivamente os serviços de internet e, de acordo com os dados oficiais mais recentes, mais de 5 milhões de cubanos (em um paĂ­s com 11 milhões de habitantes) se conectam atualmente à rede, principalmente por meio de dados móveis.

Mas, como Joan Barata, especialista em liberdade de expressão e regulamentação da mĂ­dia do Centro de Informação e Sociedade da Universidade de Stanford, nos EUA, explica à BBC News Mundo, tem havido uma contradição entre ampliar a conectividade e a liberdade de acesso aos conteĂșdos em Cuba.

"Por um lado, hĂĄ uma disposição para que os cubanos possam ter um acesso maior à internet. Houve uma época em que era impossĂ­vel; mas nos Ășltimos tempos, em termos de conectividade, tem sido feito um esforço para melhorar", avalia.

Jovens cubanos usam computador em casa

Yamil Lage/AFP

"Porém, em termos de controle de conteĂșdo, as coisas não mudaram. Nos Ășltimos anos, foi aprovada uma série de decretos especiais, um reformulando o anterior, estabelecendo uma estrutura para alcançar o controle de conteĂșdo e restringir a liberdade de expressão", acrescenta.

Laritza Diversent, diretora da consultoria jurĂ­dica independente Cubalex, especializada em questões de direitos humanos na ilha, acredita que isso se deve em grande parte ao fato de que as redes sociais se tornaram o Ășnico espaço de que os cubanos dispõem para canalizar suas queixas e seu desconforto — algo que ficou evidente com a crise atual do novo coronavĂ­rus.

A ilha conta com um Ășnico provedor de internet, uma empresa estatal chamada Etecsa, que durante anos limitou o acesso dos cubanos a certos sites (de meios de comunicação a sites de varejo), o que difundiu o uso de VPNs.

Após os protestos de 11 de julho, sites de monitoramento de trĂĄfego digital, como o Netblock, detectaram que o provedor estatal cubano limitou intermitentemente o acesso dos cubanos à rede, em uma aparente tentativa de conter as manifestações.

Agora, o novo decreto e os regulamentos que o acompanham autorizam legalmente a Etecsa a cortar a internet quando o governo julgar conveniente e até mesmo impor multas, confiscar cartões SIM ou telefones das pessoas (algo que também acontecia anteriormente, segundo inĂșmeras denĂșncias).

"O que eles estão propondo agora não é novidade. É algo que jĂĄ era feito com artistas e dissidentes. Agora estĂĄ tendo um corpo jurĂ­dico. Faz parte de um sistema jurĂ­dico que vem se estruturando desde o momento em que se começou a dar acesso à internet para a população e que prioriza a ideologia como alicerce da cibersegurança", opina Diversent.

Os questionamentos

Os especialistas consultados pela BBC News Mundo concordam que o documento chama a atenção pela imprecisão das definições, o que pode abrir caminho para que qualquer forma de dissidĂȘncia se enquadre em uma das categorias.

"A maior parte das normas aprovadas tem carĂĄter de sanção, inclusive penal, e as normas internacionais dizem que só se recorre a restrições que podem levar à punição penal em casos excepcionais, como pornografia infantil, e isso tampouco é o que acontece aqui", afirma.

As normas, diferentemente do que acontece em outros paĂ­ses, não oferecem salvaguardas nem apresentam mecanismos para garantir a liberdade de expressão dos cidadãos. Tampouco sugerem a criação de entidades ou órgãos reguladores independentes que garantam o respeito aos direitos de expressão: o governo é o Ășnico que determina o que é falso ou ofensivo.

Vaca, por sua vez, destaca que isso por si só é "grave", jĂĄ que as normas internacionais promovem permitir crĂ­ticas aos dirigentes, à ideologia e ao sistema polĂ­tico — algo que, na sua opinião, os novos regulamentos cubanos estão "criminalizando".

"É preocupante, por exemplo, entender o que ou quem definirĂĄ o que se entende por notĂ­cia falsa em um paĂ­s em que a veracidade da informação não se trata de uma checagem dos fatos com base na verdade objetiva, mas sim na forma como se reflete no discurso oficial", avalia.

Nesse sentido, o relator especial acredita que isso pode tornar a situação complicada não só para os usuĂĄrios e ativistas da rede, mas também para os jornalistas independentes.

"Estamos falando de uma institucionalidade em que só se reconhece como jornalista aqueles que trabalham para a imprensa estatal. Estamos falando de um sistema de meios de comunicação em que a verdade só se encontra na voz oficial. Portanto, uma crĂ­tica ao governo por parte da imprensa independente na internet pode ser enquadrada dentro dessas categorias", diz.

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Não estĂĄ claro no momento se as normas incluirão também usuĂĄrios que compartilham a ideologia do sistema nas redes sociais ou meios de comunicação oficial.

Muitos também compararam as medidas com as aplicadas por outros governos autoritĂĄrios, como a China, e alguns chegaram a escrever que as regulamentações fazem de Cuba a "Coreia do Norte do Caribe".

Os impactos

Os especialistas consultados pela BBC News Mundo divergem sobre as implicações que a regulamentação pode ter no médio ou longo prazo no uso que os cubanos fazem das redes sociais.

"Acho que estão buscando acima de tudo o chamado efeito exemplar: se vocĂȘ descobrir que seu vizinho foi multado por fazer denĂșncias nas redes sociais, provavelmente não vai fazer. O governo não tem recursos para monitorar o que todos os cubanos publicam nas redes sociais, mas basta fazerem isso com alguns, que conseguirão que outros se inibam por medo ", avalia Diversent.

Em pronunciamento na televisão estatal (a Ășnica), o diretor de Cibersegurança do Ministério das Comunicações, Pablo DomĂ­nguez VĂĄzquez, disse que o governo tinha "um registro de todos os incidentes nas redes sociais" e ameaçou que poderia ser usado até mesmo contra cubanos que vivem no exterior.

Vaca, por sua vez, acredita que as redes sociais continuarão a ser utilizadas porque se tornaram "uma vĂĄlvula de escape para manifestações que foram reprimidas por muitos anos".

"E as manifestações e as causas dessas manifestações ainda estão lĂĄ. Tratar essas manifestações com menos liberdade de expressão pode ser contraproducente", diz ele.

Barata concorda que a sociedade civil cubana começou a mostrar "que perdeu o medo" e que novas formas de repressão do discurso podem ser ineficazes.

"Acredito que na fase em que nos encontramos, quem quiser se expressar ou exercer o ativismo vai continuar fazendo. Alguns vão recorrer ao anonimato, mas muitos outros ainda vão continuar mostrando sua identidade", avalia.

"Eles jĂĄ estavam correndo risco desde antes, e neste tipo de sistema, chega num ponto em que a repressão e as ameaças não são mais eficazes. Elas perdem a eficĂĄcia porque não hĂĄ nada a perder, porque tudo jĂĄ estĂĄ perdido. E acho que os cubanos estão nesse ponto", acrescenta.

Fonte: G1

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