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'No momento mais difícil da minha vida, a educação foi libertadora', diz detento que passou em 1º lugar em Direito na UFRN

Por LivreTV Notícias em 10/03/2023 às 16:57:26
Interno da Penitenciária Rogério Coutinho Madruga, primeiro lugar entre cotistas, diz que sentiu falta de dar um abraço na mãe na hora da aprovação. Ele vai progredir para o regime semiaberto. Preso é aprovado em 1º lugar em Direito na UFRN em vagas para cotistas

"No momento de mais dificuldade na minha vida, a educação foi esse libertador, esse transformador. Devo isso a ela".

A afirmação é do detento que passou em 1º lugar no curso de Direito da UFRN nas vagas para cotistas no Sisu deste ano. Ele, que preferiu não ser identificado, concedeu entrevista para a Inter TV Cabugi (veja reportagem acima).

Preso há quatro anos na Penitenciária Rogério Coutinho Madruga, em Nísia Floresta, na Grande Natal, o detento estudou para o Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade (Enem PPL) dentro da cadeia, onde é considerado um preso de bom comportamento, segundo a Secretaria Estadual de Administração Penitenciária (Seap).

Aprovado em primeiro lugar, o apenado de 38 anos diz acreditar na ressocialização e quer servir de exemplo para outras pessoas dentro do presídio.

"Eu não só acredito, como eu, de alguma forma, gostaria de ser um representante, um exemplo disso. Eu devo isso às pessoas que estão aqui e que estão lutando por uma oportunidade. Fica uma coisa muito grande por esse aspecto, porque eu não posso desistir, porque eu sei que eu represento de alguma forma essas pessoas que estão querendo mudar", diz.

"Se eu não acreditasse, eu caminharia por um caminho individual, me desvinculando delas, Mas eu preciso me enxergar como alguém que enxerga essas pessoas que estão lutando por oportunidades".

Apenado está detido desde fevereiro de 2019

Pedro Trindade/Inter TV Cabugi

Além do bom comportamento, o detento trabalha durante 6 horas do dia na cozinha e no refeitório da penitenciária e ainda estuda. Por conta disso, tem tido direto à remição da pena, que é de 15 anos - por tráfico de drogas e associação para o tráfico. A cada dia de trabalho ou 8 horas de aula, um dia de pena é reduzido.

Antes mesmo da aprovação na UFRN, a previsão já era de que ele progredisse para o regime semiaberto neste mês de março, o que vai possibilitá-lo estudar presencialmente o curso de Direito.

Em nota, a UFRN afirmou que para ingressar na instituição tem que atender aos critérios exigidos no sistema de seleção unificada, o Sisu, e que não é informada sobre os antecedentes criminais dos aprovados. A universidade destacou ainda que o aluno já está matriculado e que não faz distinção entre os ingressantes.

'Queria abraçar minha mãe'

O apenado disse que se surpreendeu quando soube do resultado e que tudo que desejou naquele momento foi estar perto da família e abraçar a mãe.

"Quando eu recebi a notícia, eu fiquei em choque, positivamente falando. A primeira sensação que me veio é que eu queria estar perto da minha família para abraçar minha mãe, porque eu sei que ele está impactada com tudo isso", contou.

"Eu queria muito abraçar ela na hora, dizer que eu sou muito grato. E por mais que em algum momento pareça que não, fiz valer aquilo que ela me ensinou".

Detento sentiu falta de abraçar a mãe após aprovação no vestibular e comemorar com os filhos e a esposa

Pedro Trindade/Inter TV Cabugi

A alegria também ainda não foi compartilhada com a esposa, com quem é casado há 14 anos, e com os seis filhos.

Para o apenado, estudar tem sido uma forma de eficaz de passar o tempo na cadeia. "O tempo é inimigo, de alguma forma, de quem está na prisão. Há uma música que diz que o relógio da cadeia bate em câmera lenta. Então você amanhece o dia querendo que o dia termine e você chega ao início da noite, querendo que ela passe, que o dia de amanhã chegue o mais rápido possível", conta.

"Então você precisa de alguma forma aprender a lidar com esse sentimento de ansiedade, que a hora não passa, e a forma mais eficaz é ocupar seu tempo de maneira produtiva".

5 horas de estudo por dia

Após as horas de trabalho na cozinha e no refeitório, o agora estudante de Direito da UFRN sempre segue para a biblioteca da penitenciária, onde passa cerca de cinco horas estudando.

"Foi sendo despertado dentro de mim o desejo de reaver o conhecimento que eu tinha de material didático mesmo. Eu comecei a estudar nessas cinco horas, quando eu saía do trabalho. Eu ficava mais ou menos essas cinco horas aqui tentando fazer com o que o tempo passasse mais rápido", conta.

Para fazer a prova, ele diz que mudou um pouco a estratégia e começou "a focar em algumas coisas que eu tinha mais deficiência, me preparando pro Enem".

Atualmente, o Rio Grande do Norte tem 88 internos cursando terceiro grau através da Educação à Distância (EAD) e outros 797 no ensino regular, estando no fundamental ou médio.

Apenado dedicava cerca de 5 horas do dia estudando para o Enem

Pedro Trindade/Inter TV Cabugi

A penitenciária Rogério Coutinho Madruga, onde o apenado cumpre pena, era anexa do Presídio de Alcaçuz, o maior do Rio Grande do Norte e que foi palco, em 2017, de uma rebelião, que ficou conhecida como Massacre de Alcaçuz e terminou com 27 presos mortos.

Para o apenado, a educação hoje é o grande potencial de transformação dentro de uma penitenciária.

"A cadeia é fonte sempre de notícias negativas. Pelo menos a sociedade espera não ter notícias de uma cadeia. Quando não tem notícias de uma unidade prisional, é porque está tudo tranquilo. As pessoas estão lá cumprindo sua pena e tal. Mas quando as notícias surgem, geralmente são notícias negativas", aponta.

"E a educação mostrou ter esse potencial de ser uma geradora de transformação e de ser uma fonte de boas, de ótimas notícias. Porque eu tenho consciência, em partes, da grandiosidade de tudo isso. Isso não me pertence, eu não sou proprietário desse resultado".

Escritório social

A volta por cima de um apenado não costuma ser fácil. Nem aos estudos e também ao mercado de trabalho. Desde 2019, o Conselho Nacional de Justiça tem o Escritório Social, que dá suporte às pessoas egressas do sistema prisional e seus familiares.

Em Natal funcionando de desde 2021, o Escritório Social atendeu cerca de 173 presos e oito deles conseguiram oportunidade no mercado de trabalho.

Apenado passa horas na biblioteca depois de trabalhar na cozinha da penitenciária

Pedro Trindade/Inter TV Cabugi

"Outra coisa é o estigma. São pessoas em semiliberdade, que usam tornozeleira eletrônica, são monitoradas. E poucas pessoas dão oportunidade para quem está com tornozeleira eletrônica. As pessoas não identificam ali um ser humano, mas procuram saber o que é que elas cometeram, qual o crime que foi cometido", explicou a psicóloga do Escritório Social, Fernanda Nascimento.

"Aqui não interessa pra gente o que a pessoa fez para estar ali, para passar 15, 10 anos. A gente está vendo a pessoa. O atendimento é uma demanda espontânea, então ela vai porque quer, quer mudar a história dela. E a gente está para dar oportunidades, dar oportunidade de acessar o mercado de trabalho. A gente sensibiliza as empresas, a gente precisa disso, do comprometimento da sociedade no geral", finalizou.

Penitenciária Estadual Rogério Coutinho Madruga, em Nísia Floresta, na Grande Natal

Pedro Trindade/Inter TV Cabugi

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